quarta-feira, 31 de outubro de 2007

SIMULACRO

_Homem bom é o Senhor Prefeito!

_ Muito honesto!

_Devemos tanto a ele!

_ Que Deus ilumine sua gente!

Esse diálogo era constante na casa de Seu Quirino,especialmente `a tardezita quando proseavam, tomando chimarrão sentados à porta.

Ele e Siá Ignácia tinham verdadeira adoração pelo Dr. Juca.Na verdade , o homem dava grande atenção àquela família simples.O pai, velho Quirino,fora desde sempre peão dos Fagundes e com a idade passou a ser também caseiro.

Ninguém assava um churrasco de ovelha como ele!

E como a estância dos Fagundes era lindeira com a do Dr. Juca,este fazia questão de ter Seu Quirino comandando os churrascos de domingo. Dona Ignácia o acompanhava. Tinha prazer em preparar as saladas e tratava o Sr. Prefeito com toda a mesura possível,inclusive chamando-o pelo sobrenome .Era Dr. Pontes prá cá, Dr. Pontes prá lá... O mesmo exigia do Ironito , único filho do casal:

_Guri,muito respeito com o Dr. ,é gente boa e importante!

E o gurizinho obedecia.

Até mesmo quando estava presente o menino do Dr. Pontes e eles saíam para correr pelo campo, Ironito colocava-se em posição de inferioridade . Isso era consideração, como ensinaram os pais.

Já o Pontinho(como chamavam o filho do prefeito)que adorava ser obedecido, não perdia um domingo de brincadeiras com o filho dos camponeses.

Quando Pontinho entrou na escola,começaram a rarear as visitas ao campo, tornando-se então uma exceção.

A vida do caseiro seguia sua rotina...

Ironito era estudioso e conseguiu facilmente concluir os três primeiros anos escolares.Os pais orgulhavam-se dele.

A professora unidocente, que lecionava as turmas de primeira à quarta séries, também apreciava o menino. E por isso mesmo viu-se obrigada a fazer uma visita desagradável ao Seu Quirino e Dona Ignácia nos primeiros dias do novo ano letivo.Precisava alertá-los: repetira-se um fato que no ano anterior ela tentara resolver apenas com uma boa conversa com Ironito.Da primeira vez ela ficara em dúvida sobre o culpado, mas agora não dava para levar na conversa. O guri fora flagrado ,de novo,fazendo sem-vergonhice no banheiro com outro menino.
_ Era isso.Desculpem, disse a professora, retirando-se.
Seu Quirino não movia um músculo da face.Quando moveu-se foi para saltar em cima de Ironito. E D. Ignácia chorava.
_Tu vai ver só o que acontece com gente da tua laia!
A surra deixou o menino quase à morte.O pai só parou quando a criança desmaiou.A mãe sofria , mas não se animava a contrariar o marido.
Quando coseguiu ficar em pé e abrir os olhos inchados pelos socos que recebera, o guri foi expulso de casa sem dó nem piedade.

_ Lugar de sem-vergonha é na rua!
_Não tenho mais filho! Que tristeza,Senhor!
_O que os outros vão pensar?
-Fora! Fora!

Passaram-se dias terríveis , mas a vida seguiu seu curso...

As prosas do casal tornaram-se mínimas.Era um dolorido laconismo e um nome foi para sempre ignorado.
Os conhecidos evitavam falar do assunto.E o Dr. Pontes ,que continuava cada vez mais amável com o casal,só comentava o caso com o amigo Fagundes, lamentando a desgraça de pessoas tão sinceras e trabalhadoras.
D. Ignácia, depois de muito tempo ,teve notícias de Ironito.Ele morava numa cidade vizinha,continuava estudando e trabalhava em um salão de beleza.
Ah! como ela queria que o seu menino tivesse dado a metade das alegrias que
o Dr. Pontinho, como era agora chamado o futuro prefeito,deu à família Pontes.
Aquele sim era um filho exemplar!
Votaram nele com muito orgulho por serem amigos do Doutor.
Sentiram muito não poderem ir ao churrasco da vitória,pois naqueles dias Seu Quirino já andava acobardado por uma dor no peito, mas mandaram uma salada linda como ela só.
A doença fez o pobre homem afastar-se das lides do campo.Longo tempo na cama permitiu que ,de mansinho, D. Ignácia passasse a tocar no assunto proíbido.
Afinal ,ela nunca se perdoara por não ter insistido numa reconciliação.E depois, alegava que o pequeno certamente fora abusado por algum dos tantos peões da estância ;quem sabe até por um daqueles desconhecidos que de vez em quando pediam pouso.Ela nunca simpatizara com o mascate Sabiá e algo lhe dizia que era ele o culpado que colocara Ironito no caminho do pecado.Em certa manhã tivera a impressão de vê-lo dando um caramelo ao piazito.
Quando falava dessas idéias ao marido já exausto pela doença, ouvia:
_Pode ser, mas agora é tarde.E se ele não quisesse , não ia atrás da sem-vergonhice.

Dessa forma , tudo permaneceu assim até a morte do velho Quirino.
A viúva sofreu a nova dor com muita coragem, no que foi amparada pelos patrões e pela família do Doutor Juca ,já então pai do prefeito.
Se não tivesse essa gente maravilhosa , o que seria dela,pensava a mulher.

Na ocasião Ironito,vencendo todos os temores, decidiu visitar o que restava da família. A mãe chorava de tristeza e alegria , abraçada ao filho.

Após a missa de sétimo dia,rezada na cidade , com a presença de poucos conhecidos,entre os quais o Dr. Pontes e seu filho, que cumprimentaram Ironito
amavelmente, mas com reservas, mãe e filho voltaram ao campo.
Naquela noite, véspera da partida do rapaz, a velha mãe não se conteve:
_Meu filho,sei que és boa pessoa e que foste conduzido ao caminho da desgraça por algum mau-caráter.Diz quem foi..
O rapaz relutou ,mantendo-se em silêncio.
_É só o que te peço,meu filho. O nome dessa peste . Eu já te perdoei, mas Deus há de fazer justiça com o canalha que te usou quando criança.
_Por favor, meu filho, o nome dele!
De olhar cabisbaixo Ironito falou num sussurro:
_Foi o PONTINHO.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

INCOMPATIBILIDADE

Ela chegara do Nordeste bronzeadíssima e pronta para curtir o carnaval.Além disso, nunca estivera no Rio de Janeiro e ,tendo alugado um pequeno apartamento na "Barata Ribeiro",ir à praia era um "pulinho".
Ele comandava a Bateria dos Rouxinóis, um bloco de rua ,e durante o dia vendia bijuterias na orla onde ela adquiriu um par de brincos de búzios e contas.

Os dois conversaram sobre o tempo que se fizera radiante , sobre o desfile que aconteceria naquela noite , sobre as belezas da cidade ,e muito mais teriam conversado se não tivesse acontecido o arrastão que espantou os banhistas.

À noite , espremida no meio da multidão que cantava junto com os sambistas,ela espantou-se ao notar que o destaque, do alto do carro alegórico, lhe acenava e jogava beijos.Apertou os olhos , buscou na memória e reconheceu: era o belo mulato que lhe vendera os brincos e roubara a serenidade, sim porque seu sorriso aberto voltara-lhe repetidas vezes à lembrança.
Dirigiu-se rapidamente à dispersão e recebeu-o sem melindres com um prolongado beijo.Foi o início de um ardoroso caso de amor onde a paixão misturou-se ao sabor salgado das águas do mar e ao frenesi das batucadas noturnas quando seus corpos ondulavam e vibravam no passo marcado do prazer.
Decidiram que ela não voltaria ao sul, mas permaneceria bronzeada e linda ao lado do príncipe etíope que o carnaval fizera desembarcar em seus braços.

No entanto ela voltou...

Aquele foi um ano atípico no Rio de Janeiro.Fez frio , não permitindo que os corpos continuassem colorindo ao sol. E quando ela perdeu o bronze , ele perdeu a tesão; afinal ele sempre desprezara as "galegas".

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

(continuação)



...Mas, ficaria bem ir a um baile de carnaval depois de velha e ainda por cima deixada do marido?...Talvez fosse melhor esperar pelo baile do Dia das Mães..Não!...Iria com o filho.Que bobagem!Teria orgulho de entrar com ele no salão de um clube. Coisa mais chique!

Pensando na vida de agora, Candinha ainda se sentia intimidada com o que pudessem comentar quando a vissem no baile, mas estava pronta para mais esta batalha contra o preconceito.



Naquele dia foi assaltada diversas vezes pela lembrança dos pais.Ele, ranzinza, mas muito trabalhador e reconhecido por sua honestidade ;a mãe que só saia de casa para a missa de domingo, carregando uma filha em cada mão , obediente às vontades do marido ao qual nunca vira nu porque só se deitavam com a luz apagada(isso ela havia contado à Candinha num dos sermões ouvido por ocasião da separação).E a mana Rosinha , morta tão cedo por uma meningite!
Foi um verdadeiro carnaval de memórias e emoções aquele dia.Dormiu após ter entregue Heitor à Virgem Santíssima ,como sempre fazia.
Acordou cedinho na manhã seguinte para preparar um gostoso café-com-leite para o filho e encontrou-o sentado à mesa com um embrulho nas mãos.
_Mamãe,olhe o que trouxe para nós !E desembrulhou dois cortes de cetim branco e outros coloridos.
-Nossa fantasia de carnaval.A Senhora se anima a fazer?Com calma porque falta quase um mês...
_Fantasia de quê?
_De colombina para a Senhora e de pierrô para mim.
_Eu? de colombina? o que vão falar?...
_Que você , enfim está tendo todo o tratamento que sempre mereceu.Recebendo a recompensa por ser mãe dedicada e mulher exemplar. E eu serei seu galante companheiro.
Ela teve ímpetos de dizer que não podia,mas pegou os tecidos e falou:

_Vou enfeitar com lantejoulas coloridas os lozangos da minha saia.

Fim

domingo, 28 de outubro de 2007

continuação

_ E quando será isso?Perguntou.
-No carnaval ,mamãe.Quero que a senhora assista um baile de carnaval, sei que é um antigo desejo seu.
_Verdade, filho.Quantas vezes desejei usar uma daquelas fantasias que confeccionava para as freguesas!Lembro até de ter experimentado uma colombina da filha da Dona Nita e ter sonhado depois que um pierrô me levava pela mão.
_Então está decidido.Iremos ao carnaval para inaugurarmos nosso status de novos sócios!Agora vou ao trabalho, que é hora de entregar as encomendas. Até!
Heitor saiu em passos rápidos e a velha mãe retomou suas recordações.Passara 15 anos de sua vida ouvindo a mesma cantilena do pai: mulher deixada do marido não é boa coisa!Mas agüentara firme e hoje tinha sua casinha e um filho que era uma preciosidade, menino estudioso ,jovem respeitador e dedicado ao trabalho.Viviam sem muitas posses ,é verdade, mas ela já podia dar-se ao luxo de cuidar apenas da casa, deixando as noitadas de costura desde que lhe aparecera aquela "dor na coluna" e Heitor a proibira de ficar pedalando dia e noite.Afinal ele estava trabalhando bem na alfaiataria do Seu Manoel.
continua

FANTASIA DE COLOMBINA

Estava concluída a nova pintura da sala de costura e Heitor olhava feliz o resultado do seu trabalho.A tinta verde que sobrara das reformas de fim de ano realizadas na casa de Seu Antenor viera a calhar , já que andava, há tempos querendo tornar mais bonita a casa de sua velha mãe.
E aquela sala de costura ,onde ela costumava, aínda hoje, sentar-se à tarde , merecia "roupa nova",afinal, fora dali que a boa Candinha tirara o sustento e a educação para ele.Mulher batalhadora aquela!
Agora ele precisava trocar a madeira da porta porque uma fresta de largura regular deixava passar uma réstia de luz que incidia exatamente sobre a máquina Singer.Mas a madeira andava pelos olhos da cara e, pensando bem, a faixa de luz dourada refletida na parede verde dava um ar de pintura abstrata. Uma réstia assim nunca passaria desapercebida!Enquanto não adquirisse a madeira faria de conta que aquilo era sua obra de arte.
_Filho?Onde você está?
_ Na costura,mamãe.Era assim que se referiam àquele ambiente.
_Qual a novidade que você ia me contar?
_Sente-se mamãe.Acho que você vai adorar.Eu fui aceito como sócio do Clube Caixeral e meu primeiro baile será para levá-la.
_Filho! Você venceu! agora será de sociedade.
Num átimo passava pelas lembranças de Candinha toda a luta para criar aquele guri: costura até altas horas ,dívidas permanentes ,solidão, dependência da vontade do velho pai que a recebera em casa após sua separação de Fortunato ( o infeliz nunca mais procurara o filho).Quantas vezes ouvira o pai recriminá-la por ter sido abandonada, dizendo que era uma desgraça ter uma filha deixada do marido, que ela devia envergonhar-se, que as pessoas já o olhavam de maneira diferente por ter uma filha assim...
(continua)
VERDADES BAILARINAS

O preconceito e a magia são verdades bailarinas.
Também o são nossos traços interiores, nossas feridas emocionais.
Estão sempre rodopiando `a nossa volta e, muitas vezes, fingimos não vê-las. Simplesmente ignoramos, rotulando sob conceitos outros ou impedidos de ver pela cegueira da nossa vaidade.
Elas continuam ali, bailando , imunes à nossa dissimulação.
E as atitudes que tomamos influenciados por elas irão direcionando nosso destino, que poderá ser escurecido pelo preconceito ,perturbado por nossas emoções ou iluminado pela magia.
E o impressionante é que em nossas decisões nunca haverá o absoluto porque "a verdade não tem um ponto final ;tem ponto de vista"