sexta-feira, 2 de novembro de 2007

VÃO-SE OS ANÉIS...

A casa grande aguardava o sinal de que o parto tivera êxito.Naquela família as crianças nasciam sob o olhar atento da parteira, uma negra velha que se dizia ter o poder de tirar a dor com as mãos.

Na sala de visitas, a matriarca esperava o chamado para conhecer mais um GOUVEIA DA SILVEIRA.Era costume mostrar-se o recém -nascido a pessoas capazes de transmitir no primeiro olhar a proteção e os augúrios que o conduziriam pela vida.O Dom do Primeiro Olhar era a certeza de bons fluidos.

Quando foram ouvidos os vagidos do nenê ,Dona Lenora levantou-se,postou o tricô sobre a mesinha e dirigiu-se ao quarto.

_É uma menina!E parece com a avó!Sorriu a preta velha.

_É uma Gouveia .E será uma exímia pianista como Tia Lilá, acrescentou a avó.

_Encantará o mundo com as mãos ,através da música.

Dirigiu seu bondoso olhar à menina e beijou a filha.



Estava lançada a sorte da pequena Isabelle.



Dona Lenora prometeu ,então, que seus preciosos anéis , verdadeiras filigranas de ouro e diamantes, adornariam ,um dia, os dedos daquela neta predestinada ao virtuosismo.


Aos oito anos começou a estudar piano com a melhor professora da cidade. Preferia olhar para o busto de Mozart que enfeitava a mesinha lateral, mas dedilhava obedientemente as teclas do imponente instrumento . Assim completou seis anos de estudos entre bemóis e sustenidos.
Às vezes descobria-se olhando as mãos e imaginando os anéis da avó a brilharem nos dedos bem torneados.


Na adolescência rebelou-se e deixou de comparecer às aulas,alegando dores nas mãos.Dizia ainda que não mais suportava repetir sem alma as mesmas melodias.


Os pais compreenderam , a avó, não.


Iniciou-se assim uma sucessão de desentendimentos entre as duas que culminaram quando a jovem optou por fazer vestibular para Artes Plásticas. Nessa época as duas famílias moravam em bairros distantes e as visitas eram esporádicas. Por ocasião das festas de fim de ano aconteceu que ao chegar em casa da filha,Dona Lenora surpreendeu Isabelle modelando peças de cerâmica.Ficou horrorizada com o que chamou de sujeira e tralhas e garantiu ao sair:


_ Essas mãos imundas não merecem meus anéis! Vou doá-los a uma obra social que se dedique a ensinar música a crianças .A música é que é arte de verdade!


E assim fez. Mas teve o cuidado de procurar a Instituição reconhecidamente idônea onde, por acaso, se abrigava uma netinha da velha parteira da estância.
Ao reconhecer a menina , mudou de idéia e resolveu entregar à ela as jóias. Na presença da Diretora da Casa ,recomendou que o pequeno tesouro só fosse usado em momento de grande necessidade ou de extrema alegria.


A notícia desse gesto espalhou-se na família, gerando os mais diversos comentários. Ninguém imaginou que aquilo já era o primeiro sinal da demência que por longos anos instalou-se na velha Senhora e exigiu dispendiosos cuidados dos parentes.



Quando da sua morte não teve o acompanhamentoa da neta que se achava em Paris , onde se exilara após a Revolução Redentora, pois seus ideais eram considerados subversivos.
Isabelle morava nos arredores da Cidade Luz .Na Europa continuou se aperfeiçoando nas Artes e chegou mesmo a ocupar uma cátedra em conceituada universidade.

Os salões de arte disputavam suas esculturas e ela criava raras peças de grande valor artístico.Tinham todas um emblemático detalhe:as figuras humanas , de formas perfeitas apresentavam mãos que se mostravam lindas ,mas terminavam em disformes "borrões" que em nada se pareciam a dedos.



Reconhecida internacionalmente, foi trazida à cidade natal onde o Prefeito, em nome dos conterrâneos entregou-lhe uma medalha e cantou loas à sua nobre arte.



Terminada a cerimônia ,Isabelle teve sua atenção despertada por um mulatinho com um embrulho pequeno e colorido.


_É para a Senhora. Foi minha mãe que mandou.


Entregou o presentinho e saiu correndo.


A artista abriu o pacotinho .Ele continha dois anéis e um bilhetinho.




"TENS UM DOM ESPECIAL :mãos que transformam material bruto em beleza.

Estes anéis são teus.Guardei-os como fiel depositária por mais de trinta anos.

Ass. Pretinha (a neta da parteira que atendeu tua mãe).

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